Quando falamos em aborto, muita gente imagina que o tema é recente, ligado a debates modernos, feminismo ou disputas políticas contemporâneas.
Mas basta um olhar para a história para perceber que a interrupção da gravidez existe há milênios, em praticamente todos os povos, religiões e classes sociais.
Na verdade, o aborto é tão antigo quanto a própria história registrada. E entender como diferentes culturas lidaram com isso ajuda a compreender um dado incômodo, mas real: onde a prática é ilegal ou estigmatizada, mulheres continuam abortando, só que em condições muito mais perigosas.
Aborto na Antiguidade
O aborto aparece nos textos mais antigos da humanidade. O Código de Hamurabi, escrito há quase 4 mil anos na Mesopotâmia, já mencionava punições para quem provocasse um aborto sem consentimento, o que prova que ele era praticado.
No Egito Antigo, papiros como o de Ebers registram receitas de misturas de plantas usadas para interromper gestações. Eram métodos rudimentares, mas aceitos socialmente, principalmente entre mulheres jovens ou pobres que não podiam arcar com mais filhos.
Na Grécia, Hipócrates descreveu técnicas usadas por parteiras e ervas abortivas, como arruda e silfium.
Já em Roma, o aborto era comum, especialmente entre mulheres ricas, e raramente condenado, exceto quando impedia a linhagem de um patriarca.
Ou seja, o ato em si não era tabu. O tabu era quem estava abortando e por qual motivo.
China, Índia e povos africanos
Na China Antiga, durante a dinastia Han, há registros médicos detalhando métodos abortivos. A interrupção da gravidez era vista como uma decisão familiar, envolvendo questões financeiras e sociais.
Na Índia, textos ayurvédicos citam abortivos naturais. Apesar da forte presença religiosa, a prática era conhecida, usada principalmente por mulheres que enfrentavam casamentos arranjados, viuvez precoce ou risco de exclusão social.
Em boa parte da África pré-colonial, parteiras dominavam o conhecimento sobre ervas, massagens e poções usadas tanto para estimular quanto para interromper gestações. O aborto não era associado à culpa, mas à sobrevivência, especialmente em áreas com alta mortalidade infantil e materna.
Esses registros mostram algo essencial: as mulheres sempre criaram seus próprios meios quando o sistema social não estava preparado para acolhê-las.
Europa Medieval e a religião
Foi no período medieval, especialmente após o fortalecimento da Igreja Católica, que surgiram as primeiras tentativas de proibir oficialmente o aborto.
Curiosamente, até o século XIII, muitos teólogos acreditavam que a alma só “entrava” no feto semanas após a concepção e, portanto, o aborto inicial não era considerado homicídio.
Mas com o tempo, o controle sobre a sexualidade feminina e sobre heranças familiares se intensificou, e a prática passou a ser criminalizada. Mesmo assim, parteiras continuaram oferecendo ervas, chás e procedimentos secretos.
Era uma prática perigosa, mas frequente, especialmente entre mulheres pobres.
América pré-colonial e colonial
Entre povos indígenas das Américas, inclusive no Brasil, o aborto fazia parte do conhecimento medicinal. Caciques, curandeiras e parteiras sabiam quais plantas podiam ser usadas para interromper ou manter gestações. As razões envolviam:
- intervalos entre partos,
- saúde da mãe,
- restrições alimentares,
- guerras ou migrações.
A perseguição só começou após a colonização europeia, que trouxe leis cristãs e punições severas, e novamente, a prática continuou, só que escondida.
O aborto nunca deixou de existir
Com a entrada da medicina moderna o aborto, quando realizado em ambiente seguro, se tornou um procedimento simples, rápido e com baixíssimo risco. Porém, em muitos países, a política não acompanhou a ciência.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS):
- 45% de todos os abortos no mundo são inseguros
- 97% dos abortos inseguros acontecem em países onde a prática é ilegal ou extremamente restrita
- Cerca de 39 mil mulheres morrem por ano devido a complicações de abortos inseguros
Essas mulheres vêm de todas as religiões, classes sociais e continentes. E a história prova isso: a prática nunca foi restrita a um grupo, é humana, universal e atravessa culturas.
Quando o debate moderno surge, muitas pessoas acreditam que a luta atual é fruto de “moda” ou ideologia. Mas os números dizem o contrário: as mulheres continuam abortando, com ou sem lei, e a diferença é que hoje existe tecnologia para que isso seja seguro.
