Ao longo da história, as estruturas econômicas e sociais passaram por transformações profundas, mas certos padrões de dominação e concentração de poder parecem se repetir. O conceito de “tecnofeudalismo” sugere que a economia digital contemporânea está resgatando elementos do feudalismo medieval, adaptando-os para o mundo das plataformas tecnológicas e da extração de dados.
A história demonstra que os sistemas econômicos evoluem, mas muitas vezes carregam consigo elementos do passado. O tecnofeudalismo não representa um retorno literal ao feudalismo medieval, mas sim uma reinterpretação da concentração de poder e da dependência econômica em um novo contexto digital.
Para explicar melhor esse assunto, entrevistei a líder do Punder Advogados, Patricia Punder:
Como você definiria o conceito de tecnofeudalismo?
Tecnofeudalismo é um termo que descreve a ideia de que a economia digital e o capitalismo moderno estão se transformando em um sistema parecido com o feudalismo medieval, onde grandes corporações de tecnologia atuam como “senhores feudais” e usuários, trabalhadores e pequenos negócios se tornam “vassalos” ou “servos” dependentes dessas plataformas.
As big techs não irão apenas monopolizar mercados, mas irão substituí-los por uma nova estrutura econômica, na qual plataformas digitais operam como feudos contemporâneos. O termo ganhou popularidade com economistas e críticos da tecnologia, como Yanis Varoufakis, que argumenta que o capitalismo tradicional está dando lugar a um novo sistema onde o controle não vem apenas da propriedade dos meios de produção, mas do domínio sobre as infraestruturas digitais e os fluxos de dados.
Qual a relação entre esse conceito e a estrutura econômica da Idade Média?
A relação entre tecnofeudalismo e a estrutura econômica da Idade Média se baseia na ideia de que, assim como no feudalismo medieval, a riqueza e o poder estão concentrados nas mãos de poucos “senhores”, enquanto a maioria das pessoas se torna dependente de seus sistemas para sobreviver.
O tecnofeudalismo apresenta as seguintes características:
- Monopólio e concentração de poder – Poucas empresas dominam mercados inteiros, reduzindo a concorrência e controlando vastos recursos e dados;
- Propriedade dos meios digitais – assim como no feudalismo, onde a terra era o principal meio de produção e estava nas mãos da nobreza, no tecnofeudalismo, os dados e as infraestruturas digitais pertencem a um pequeno grupo de corporações;
- Trabalho precarizado e dependência digital – Plataformas como Uber, iFood e Amazon Mechanical Turk fazem com que trabalhadores se tornem dependentes dos algoritmos e políticas das empresas, sem direitos trabalhistas tradicionais;
- Extração de valor via dados e vigilância – as big techs extraem valor do comportamento e das interações dos usuários, transformando tudo em mercadoria para fins de lucro;
- Fidelização forçada e falta de alternativas – Usuários e pequenos negócios muitas vezes não têm escolha a não ser usar os serviços dessas empresas para existir no mercado digital.
Podemos dizer que as big techs criaram um novo modelo econômico ou elas apenas resgataram estruturas históricas de dominação?
O que as Big Techs fizeram não foi criar um sistema totalmente novo, mas sim modernizar antigas estruturas de dominação, adaptando-as para a era digital. O poder econômico e social, antes baseado na posse de terras, agora se baseia no controle de dados, plataformas e infraestrutura digital. Isso permite uma exploração semelhante à do feudalismo ou do capitalismo monopolista, mas em uma escala global e com ferramentas mais sofisticada.
Se os trabalhadores estão cada vez mais precarizados e dependentes de plataformas digitais, podemos considerar essa relação semelhante à dos servos medievais com seus senhores?
Sim, a relação entre trabalhadores digitais e as plataformas pode ser comparada à relação entre servos medievais e seus senhores, pois em ambos os casos há uma forte dependência econômica, falta de autonomia e exploração do trabalho sem garantias reais de mobilidade social.
Um diferença importante seria que no feudalismo, a servidão era hereditária – os camponeses nasciam e morriam naquela condição. No tecnofeudalismo, em teoria, um trabalhador pode mudar de plataforma ou buscar outra ocupação. No entanto, as barreiras estruturais fazem com que a maioria continue dependente desses sistemas, criando um novo tipo de servidão digital.
Empresas que se comprometem com ESG conseguem quebrar essa lógica de monopólio digital ou só operam dentro dela?
Empresas que adotam ESG (Environmental, Social and Governance) enfrentam um dilema quando se trata do monopólio digital e da lógica do tecnofeudalismo. Algumas tentam amenizar os impactos negativos, mas a maioria ainda opera dentro desse sistema, sem realmente desafiá-lo. Com a entrada do presidente Trump temos acompanhado muitos retrocessos e quase um desmonte de ações ESG nos Estados Unidos. Temos um setback importante em andamento e, infelizmente, não temos mais tempo para prevenir, mas somente mitigar os riscos ESG. Tendo que esperar mais 4 anos para realizar as possíveis mitigações, não tenho como imaginar se até as mitigações serão suficientes.
ESG pode reduzir alguns danos, mas sozinho não rompe a lógica monopolista do tecnofeudalismo digital. Para isso, seria necessário desconcentrar o poder, algo que as próprias big techs não têm interesse em fazer.
Que mudanças precisaríamos ver no capitalismo para evitar essa “feudalização” da economia digital?
A regulamentação e responsabilização das redes sociais, tributações voltadas para redes sociais e grandes fortunas podem ajudar no equilíbrio da sociedade no mundo. Sem mudanças estruturais, o capitalismo digital pode continuar evoluindo para um tecnofeudalismo, onde poucos controlam a infraestrutura digital e a maioria fica dependente dessas plataformas. A solução não é eliminar o capitalismo, mas reformá-lo para impedir a concentração extrema de poder e criar um modelo mais democrático e justo.